Enrolei uma manta no meu corpo no dia infernal, objecto de estudo das
previsões apocalípticas sobre o fim do Universo e de toda a existência criada
ao longo de milhões e milhões de anos, esse dia que estava marcado nos
calendários como as minhas últimas horas com algum tipo de desequilíbrio mental
para levar à loucura nos vários campos da minha existência. A gaiola que levava
nas mãos continha um pássaro de espécime rara, um animal sem qualquer tipo de
vulgaridade e com todos os pedaços de antiguidade apegados à alma que se
desenrolava num canto estrondoso, arrepiante para qualquer osso. De penas
brancas e olhos castanhos, continha asas miraculosamente fortes e capazes de
sobrevoar meio mundo sem paragens pelo meio em casos de testes fatais, cantava
todos os dias quando o coração ameaçava parar. Escondia os sentimentos puros
sobre as asas para que ninguém fosse capaz de analisar e roubar um pouco, para
satisfação pessoal ou delícia maquiavélica. E olhava-me intensamente quando as
lágrimas ameaçavam nascer nos meus leves e corrompidos olhos castanhos. As
minhas mãos tocavam nas grades verdes que o prendiam, que o amavam numa
irracionalidade fundamentada por alguns meses de convivência e existências
anteriores. Complexa e coroada pela simplicidade, ao sabor da pureza nos cantos
trocados em pleno corredor da casa que nos prendia. Os meus pés dançavam ao
sabor de uma música que o velho gravador passava, umas mãos que ficaram
registadas para sempre no tempo quando tocaram violentamente nas teclas do
piano e deram vida à composição de um qualquer compositor reconhecido, um dos
que estão mortos e famosos como é a regra geral para todos os grandes artistas.
Agarrava na tua gaiola para dançares comigo ao sabor dos meus movimentos, das
minhas sensações, num egoísmo histórico e provado por milhares de pessoas em
histórias puramente ficcionadas e trespassadas para o papel. Apesar de nunca
ter existido uma prisão literal para o teu corpo, os fenómenos loucos
provenientes da minha mente é que te prendiam a mim num egoísmo frio e sem
qualquer tipo de sentimento.
A minha memória levou-me aos segundos em que
tinha a porta da tua gaiola aberta e fazíamos amor ao som das nossas vozes, em
declarações espirituais e eternas da honestidade que corria nas nossas veias.
Dois animais com diferenças mas com o mecanismo corporal idêntico. Sentava-me
na minha janela enquanto estavas nos meus ombros e escrevia com a alma de
artista no rosto, no meu sorriso que te enviava a cada segundo. Uma inundação
de delicadeza emanava do teu corpo, nos teus gestos e nos teus cantos
compreensíveis para o meu coração, que abria-se a cada dia que passava. As
minhas roupas eram feitas à mão, nos dias em que o Sol desaparecia e dava lugar
aos tons cinzentos para se fazerem sentir no céu, contigo ao meu lado. Pássaro que um dia decidiu partir com a
promessa de voltar e ser feliz comigo, de nunca me abandonar apesar do voo que
tinha em mente e na alma. Que um dia decidiu voar e no meu coração o decidi
prender, não tendo desejos de o deixar sair. À medida que dançava na minha
cozinha, numa loucura extremamente destruidora de qualquer tipo de purezas,
concentrava-me na sua prisão. Intemporal, pneumática que acabaria com os meus
pulmões. À medida que voavas, sentia o teu canto a chamar por mim, a precisar
de mim enquanto continuava numa loucura sem qualquer tipo de medições e placas
de aviso em relação às consequências. Chamei outros animais para virem ter
comigo, fiz-lhes festas, encostei o meu rosto ao seu corpo e no fim, acabei
sempre por deitá-los fora ou expulsar de casa porque o meu lugar era para ti, à
medida que voavas. Cortava desejos de felicidade para ti, para voltares para
mim como um animal recheado de vida e pureza, cantar-me-ás todas as
experiências quando regressasses. Nunca interiorizei as tuas promessas. Até ao dia em que decidi cair. Quando a
manta que tinha enrolada me fez tropeçar no corpo e bati com a cabeça no móvel
da cozinha, houve algo que despertou na minha alma. Como se uma parte tivesse sido
rasgada e misturada com o sangue que jorrou da minha cabeça. Quando pedi ajuda
para me levares às tuas costas não hesitaste, nem duvidaste do teu amor tal
como fui fazendo à medida de que te prendia no meu interior, nas danças de
cozinha a percorrer o corredor da minha casa. Quando me levaste, soltei-te da
gaiola da minha caixa torácica. Amar é libertar. Amar é ajudar. É
preparar. O quarto de hospital continuava o mesmo de sempre, as minhas
memórias recuavam alguns anos atrás, o dia em que precisei de ajuda para
controlar os meus demónios fazia-se sentir quando os meus olhos pousaram e
colheram novamente os traços das quatro paredes brancas. O teu canto soltou-me
da loucura, dos pensamentos, continuaste a voar ao pé de mim e o teu sorriso
permaneceu.
A gaiola continua com a porta aberta ao pé da
janela.
Continuas a fazer paragens em minha casa, no
meu coração. Soltei-te da minha loucura,
nunca do meu coração. Amar é libertar, lá está, mas sei que nunca vais
partir. Não és dos pássaros de Verão que permanecem na ausência durante tanto
tempo sem dar notícias ou qualquer canto de amor, saudação. Permaneces no meu
corpo, nas minhas janelas, na minha roupa, nos meus sorrisos pois nunca viajo
sem nenhum para todos os lugares onde vou. Leva esta carta recheada de
felicidade, profunda e eterna. Volta para mim, todos os dias.