(O mais bonito desta carta foi o dono ter
morrido, vítima de um ataque no coração)
Quase que me escorrega o cigarro da ponta dos
dois dedos que o seguram e traz-me uma forte dor ao coração, por um dos meus
maiores prazeres quase desvanecer-se em segundos. Em toda a minha vida utilizei sempre a palavra “quase” – quase fui
ator, quase fui escritor, quase fui estudante, quase que tive os cabelos
loiros, já soube qual foi o meu género. Apesar de todas as vezes em que coloco
a palavra quase na minha existência também desconheço qual o género a que
pertenço, na realidade. O corpo num certo lugar, a cabeça numa outra zona, os
lábios carnudos a pertencer a um homem são, sem problemas de saúde e a minha
cabeça a preencher os lábios imaginados com uma cor vermelha, sedutores para
todos os caçadores noturnos. Apesar das confusões, autênticos furacões destruidores
das minhas convicções, consigo ter prazeres mundanos – fumar num final de
tarde, com uma caneca recheada de chá quente.
Quase que me escorrega o cigarro
da mão ao imaginar-me como uma mulher de cabelos louros, olhos castanhos e
hipnotizadores e um corpo dotado de perfeição – essa condição que muda a cada
olhar, por cada ser humano que passa pela rua e coloca os olhos em mim. Tal
como num circo imagino a prisão perpétua ao lado das panteras negras. Ao
agarrar o cigarro dos mais caros e compridos não tenho problema ao imaginar-me
num espetáculo de dominação. No meio da insanidade tenho o chá colocado em cima
da mesa da esplanada e a outra mão com um chicote. A esquerda, aquela em que
escrevo todas as memórias, a que define todos os filhos do Diabo. Nem Satanás conseguiu distribuir-me um
género em condições, aprisionou-me num corpo perfeito e beijou a minha mente
– purificada, totalmente pertencente a Deus, recheada de imperfeições e
feminina. Quero deixar crescer todos os meus fios de cabelo mas a realidade
traz-me à superfície. Os raios solares queimam a minha pele branca, as cordas
vocais estão danificadas pelo chá quente que acabei de tomar.
Quase que fui mulher, quase que
vi os meus pais casados. Hoje sou uma jovem mulher plenamente alimentada a
partir da minha cabeça e quando beijo o meu jovem amado no meio das ruas, todos
despejam venenos nas nossas cabeças. Destroem os meus cabelos louros –
imaginados solenemente – permanece o corpo masculino e perfeitamente cuidado
com alimentação vegetariana. No final da tarde, com o chicote colocado em cima
da mesa e as grades a apertarem as minhas costelas, liberto lágrimas pelo meu
progenitor não aceitar as minhas definições liberais e a minha voz consumida
num mundo completamente livre. Falta-lhe ver com olhos reais o cimento
carregado de paixão, a visão de eternidade. Liberto lágrimas pelas condenações perpétuas, soltas em todas as
janelas, pela insanidade presa no meu cérebro. Agarro no chicote e fecho-me na
jaula com panteras negras, essas que pressentem o meu cheiro. Deixo os meus
cabelos louros do lado de fora, todos os meus disfarces encantados e as
mentiras superficiais – alimentadas pela mente para enganar a sociedade
conservadora e cega. Essas panteras deitam-se serenamente, a aconchegarem um novo
elemento atirado pela sociedade, longe de ser treino por esse mesmo dito
conjunto de pessoas
.
Toca um violino como som de
fundo e não vejo o meu amado a abrir a porta da jaula. Falta-me oxigénio para
alimentar a minha mente. O poder da alma é mais poderoso do que a minha
condição corporal. É noite, já os relógios dão as doze badaladas e quero
vencer. Venço com todas as minhas
forças. Hoje trata-se de uma aceitação sem qualquer quase colocado pelo
meio. E fumei todo o cigarro, até ao fim da hora senti que me comeram os
cabelos louros e falta pouco para o cérebro ser destruído.
1 comentário:
Querido David,
para mim um texto, um conto, um livro, no fundo tudo o que seja uma partilha feita através de palavras, quer seja a partir da realidade ou da fantasia, vale sempre pelo que transmite. Pelo que diz aos outros e o se os faz pensar ou não.
Enfim, tanta coisa, só para te dizer que adorei o teu texto e que ele me fez pensar e sentir. Obrigada.
Beijinhos grandes*
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