10 outubro, 2011

É essa a (tua) missão,

Devora-me, no meio de mentiras e fantasias que tentam desenhar o cenário onde coloco os pés, com os dentes especialmente afiados no jantar à luz das velas, no minuto em que os teus olhos negros incidiram sobre os meus na tentativa de não cortarem contacto com os meus, dotados de uma intensa coloração castanha mesmo sob a luz do luar.  Enquanto os meus braços permaneciam na mesa, recheada de comida por provar e de copos vazios (objecto recheado de um pó malévolo que conteve vinho branco, num passado bem próximo do presente), o meu sorriso fazia-se sentir com toda a vibração para clamar pelas atenções de qualquer ser humano ou divino, que passasse por aquela cena de pseudo amor para qualquer uma das partes, já que os minutos de experiência na primeira pessoa do plural de qualquer verbo não passavam dos setenta. A minha mão, delicadamente cuidada graças à ausência de trabalho nesta vida, segurava o copo que se quebrou na minha pele, uma acção fatalmente provocada e planeada no meu pensamento há alguns segundos atrás. O relógio martelado no meu peito continuava a provocar-me dores mortais, descarregando pequenos choques eléctricos para terminar com a timidez que roda à volta da minha existência, desde o dia em que pressenti existência humana neste mundo pela primeira vez.
O copo quebrou e a minha mão ensaguentada foi directamente até ao peito, quem sabe para segurar a sensação de morte anunciada. O meu sorriso continuava na cara, apesar da dor apocalíptica que dançava na caixa torácica e se espalhava por todo o esqueleto. Sinto o teu desejo a alguns metros de distância, tão poucos que sinto a minha camisa a rasgar-se com a brisa gelada que passará às duas da manhã, na rua que caminharei com os meus sapatos sujos. Danificados pelo podre de uma superficialidade encontrada na passadeira vermelha ou simplesmente pelo espelho danificado à entrada de um museu, com todas as supersticiosidades a fazerem-se sentir violentamente. O meu cérebro deseja uma chávena de chá misturada com leite extremamente quente, com o intuito de danificar os lábios recentemente suavizados por um batom sem cor, de uma transparência sentida por qualquer fantasma preso nas veias dos seres humanos.  
Devora-me porque é essa a tua missão da noite. Na tua condição de monstro, não deixarás escapar a oportunidade de matar uma alma poderosa por volta das duas da manhã, à mesa de um bar (ou será de uma discoteca?) com milhares de copos vazios e álcool a misturar-se com o sangue, que percorre todos centímetros do meu corpo esvaziado de profundeza. Não compreendes que não te faço um pedido ou que te ordeno qualquer tipo de acção,  à medida que os meus braços descansam sobre a mesa. O meu cabelo é modificado por estados de espíritos, que vão colorindo os fios num tom avermelhado e quem sabe adocicado pelas longas metamorfoses das vivências registadas em qualquer mente alheia. O meu sorriso não desaparece da cara por ter conhecimento da tua missão ou da tua condição nas próximas horas. Desejo que sigas os teus instintos, personificadas logicamente em vontades. Os animais seguem os instintos em todos os momentos, ao contrário dos homens. Esses realizam as suas vontades e pecam pouco, não alimentam qualquer tipo de instinto que lhes excite a meio da noite. Coloca as mãos dentro das tuas calças se é essa a tua vontade ou, falando num tom mais formal e nobre, se é essa a sua vontade. Coloque os dentes para fora se deseja matar-me lentamente. Vou sentir os teus dentes fortalecidos pelo leve cuidado dentro do meu peito, remexendo constantemente para expulsar e danificar a carne.
O meu sorriso continua no rosto, apesar de todas as perversidades e violências perfumadas por algum tipo de vilão que resolveu sair da história de encantar. É uma pura questão de músculos, alguns quilos de material disponível para os animais à solta nas ruas por culpa da divindade, apreciadora de desafios e mudanças repentinas.
Poderosa alma, permanece. Mesmo nos dias em que o meu corpo se for, permanece tranquilamente por aqui. É um pedido, nunca uma ordem.

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