19 dezembro, 2014

Da ode ao passado e a todas as amizades destruídas


(escrevi-te com este senhor na cabeça. Walt Whitman, inspira-me a cada dia que passa. começo a pensar se a minha verdadeira religião pertence à literatura e aos grandes escritores e poetas, ao invés das figuras religiosas, a Ele. perdoa-me porque não quero destabilizar qualquer presença superior, colocada na bíblia mas não deixo de me sentir em casa à medida que abro um bom livro e as páginas começam a ser viradas, transformam-se em amor, do mais puro que senti por objetos e por uma arte. levam-me, Whitman, antes de começar a tentar escrever)

O passado é, na maioria das vezes, um chão cheio de cacos de vidro. Pedaços de espelhos partidos espalhados pelo chão, num espaço que os meus pés descalços circulam. O caminho faz-se mentalmente, nas horas em que nem os livros ou séries conseguem acalmar-me e deslumbrar-me, sem mãos dados a nenhum ser humano do presente ou futuro, esse cada vez mais próximo. O passado corta-me um pedaço do lábio, esvazio-me de sangue sujo para sentir a dor de escolhas pessoais ou alheias. Quando o chão está cheio dos nossos cacos de vidro, provenientes das nossas escolhas, há sempre forma de encontrar uns sapatos para evitar as feridas nos pés, sejam de boa qualidade, tenham péssimos acabamentos ou materiais sem resistência. A fatalidade reina nos cacos de vidro espalhados por uma outra pessoa, que come um dos nossos órgãos, levando um pedaço da minha essência. O passado é um chão cheio de cacos de vidro para me cortarem as costas, na brisa suave embaladora dos meus sentidos. Um corpo despido de preconceitos, sozinho, no meio de uma divisão sem cómodas ou armários. O meu corpo permanece em convulsões, à espera de uma das tuas palavras para voltarmos a conversar, a partilhar a mais profunda das intimidades. O passado é, na maioria das vezes, uma armadilha. 

Nunca te escrevi por pensar que devias ser tu a corrigir os erros que nos colocaram nesta ausência. Não há palavras, não há carinho ou ternura em poucas palavras trocadas, mesmo as enviadas. Há tempo para presenciar a tua evolução sem mim, tenho quase os olhos fechados à tua presença digital mas não resisto em dar uma espreitadela. A nossa relação não envolvia beijos na boca, orgasmos intensos ou brincadeiras com sexo, estava longe dessas ações. Uma intimidade confortável suavizava as nossas partilhas, desabafos reles sobre as nossas curtas vidas e seriedade pelas horas de maior fragilidade. Escrevo-te por me teres abandonado o barco e por nos teres transformado num passado, em que os teus cacos permanecem no meu chão. De forma voluntária, na tua cadeira, decidiste deixar cair a maioria dos espelhos que compunham a nossa sala de estar. As janelas, esplendor de um novo dia brilhante, foram fechadas e o ar nunca mais circulou na nossa casa. A nossa casa singela, a nossa amizade pura. Os vidros espalharam-se pelo chão, rodaram durante horas num circulo pouco percetível ao olhar humano. Os meus olhos ainda hoje choram pela nossa amizade, instalada no passado, desmaiada no chão com cacos de vidro. Escrevo-te pelo constante medo em ouvires, de forma altiva, a minha sinceridade – uma característica capaz de incomodar e destronar o teu universo cor-de-rosa, um mundo criado na tua cabeça para viveres melhor. Nem sequer tentes dizer mentiras, apontar para o meu possível engano, já que os anos em que vivi ao teu lado (mesmo de uma forma digital, o romance da presença e do tato termina e nem conseguimos fazer nada para impedir) deram-me capacidade para te conhecer como a palma das minhas mãos.

Tinha gosto em saber se soletras o meu nome, tenho as minhas dúvidas, cada vez maiores sobre este comportamento. As minhas delicadas mãos, com unhas roídas, pegam num dos teus cacos de vidro e cortam um pedaço de carne do meu lábio inferior. Para, de todas as vezes em que decidires passar os teus lábios na minha bochecha, sentires o cheiro a sangue. Hoje não se canta a amizade. Tinhas tanto gosto nos momentos em que escrevia para ti e nunca te mostrei as dezenas de textos que fiz, a pensar em ti. 

17 dezembro, 2014

A tua língua tende a sacrificar-me a sanidade


Os frutos vermelhos, amadurecidos pela passagem do tempo, não permanecem muitos dias na base de vidro da tua sala de estar. Uma cozinha amarelada pelo fumo dos cigarros soltos, em reuniões intermináveis e conversas infinitas. Paredes descascadas, em que pedaços de tinta caem em noites de tempestade à medida que os teus dois gatos negros percorrem cada canto, à procura de um novo tesouro ou de um novo recanto para adormecerem. Restam as maçãs verdes, numa base de inocência firme e longe de enfrentarem a brisa diária, carregada de injúrias e embates, que lhes leva a cor. Mas as tuas mãos lançam-se a cada maçã que tende a amadurecer, para levares aos teus lábios e não devorares em demorados minutos. São minutos de transpiração, de sofreguidão capaz de travar as minhas acções momentâneas. 

Se me percorresses a barriga com a carne dos teus lábios ou as minhas mãos com a tua respiração, era capaz de comandar um exército. Ao contrário da rigidez, cobria-os de álcool para olhá-los sem roupa. Despidos de sentimentos ou de preconceitos, a ver-lhes o sexo inchado e repleto de desejo por sexo. Não pelo meu corpo mas pelo meu objeto sexual, conservado até agora dos maus olhados, um desejo animal e carnívoro. A tua língua tende a sacrificar-me a sanidade. O teu peito a atrasar-me a respiração pelos poucos quilómetros que nos separam. Escorrego dos lençóis e entrego-me a uma santidade, desconhecida à minha mente. Fecho os olhos para desapareceres.

Mas os teus dentes trituram a pele da maçã vermelha, saboreiam-na vagamente. Os teus dedos arrastam-se pela base de vidro em que todas as maçãs permanecem. A porta é fechada e a escuridão envolve a cozinha amarelada. Falta oxigénio.