28 abril, 2016

Do pó que se levanta por toda a minha alma, ao pé do oceano


Do pó que se levanta, por toda a terra sem vida. Sem inclinação, sem novas flores a brotar, e ervas daninhas por todos os cantos. A desbravarem caminho para o calor do Sol e da vida, entre os meus pés descalços. O vento, a sentir-se entre as minhas vestes largas e sujas pelo tempo, a suavizar as inseguranças nascidas dentro da minha mente. Não resta uma ponta de beleza à minha pele, neste dia tão abafado para os meus pulmões secos. Pelo fumo do tabaco, a entrar e a sair. A entrar, a sair, a entrar, a sair pelos meus lábios. Tudo o que é belo é-me levado, à medida que a água é cada vez mais escassa. Resta-nos, a todos os seres humanos descalços, um largo oceano. Águas cinzentas, com sal a boiar na superfície, a terminarem ao largo de praias abandonadas. No meu caderno, com capa negra comprado numa loja chinesa, não me faltam as palavras. Nascem em catadupa, aos pares, a envolverem em trios recheados de amor e em certos grupos restritos. Grupos de palavras vorazes por toda a escuridão da humanidade, em que felicidadezinha ou vidinha não entram. Todos os substantivos que terminam na maldita –inha. Um pó, misturado com a areia, que se levanta e entranha nos meus cabelos desgrenhados. Demasiado deja vu ao ler este texto, não achas? Demasiada coincidência e cenário, não é? Um vento conveniente para inflamar o meu estado de espírito enquanto escrevo. Quem sabe se uma mudança drástica na minha escrita não acorde as almas mais perdidas, deixadas ao relento por donos incapacitados, que nem cachorros abandonados. No meu caderno negro desfila uma vida crua, à espera de uma espécie de salvação. Quando Me irás acudir? Ouvir as minhas preces? No meu caderno, sem páginas soltas, vivo um pouco mais à tua espera.


Numa mistura entre a divindade e tu, só te quero escolher a ti. Não me importo se coloco a minha alma em cheque, pronta a ser entregue aos fantasmas, ou se entrego o meu corpo a depravados. Ao escrever isto questiono-me sobre o verdadeiro significado de «depravados». Imoralidade? Irracionalidade? Não, tenho de riscar isto e este brainstorming. Recomeçando, mais uma vez, num ciclo vicioso. Numa mistura entre a divindade e tu, quero escolher-te a ti. Como quem escolhe um novo coração, uma nova vida, um recomeço sem defeitos. Faltam-me as palavras para te chamar, num grito desmensurado, neste pedaço de terreno à beira-mar. Morro em cada pensamento, a cada tentativa materializada num sonho ou pesadelo. Nos momentos em que adormeço no sofá, depois do almoço, fecho os olhos e vejo a escuridão. Ao contrário dos filmes mais comerciais, nem os vilões conseguem o seu final feliz. A realidade é o final e enquanto escrevo, o futuro torna-se no passado por já ter sido referido. Tu tornas-te passado, só por te colocar no papel e desapareces. Das minhas mãos, do meu corpo, dos meus olhos castanhos. Fica aqui, ao meu lado, a passar por entre as ondas. Neste mar que pode ser tão nosso.

16 abril, 2016

Em segundos, horas, dias e nenhum sinal teu


Não há lugar tão seguro como o teu corpo. Deitado sobre os lençóis encardidos pela sujidade dos nossos corpos, do suor que escorre em todos os dias de trabalho, fixo-te os olhos castanhos. Espelhos do meu rosto, quando me falta um espelho do meu tamanho pela casa, terrenos capazes de refletir a minha liberdade. É esses olhos que gravo, antes de beijar os teus lábios. São esses olhos que ficam no meu pensamento antes de percorrer o teu pescoço com a minha língua, sem medo de sentir essa barba áspera. É provável que, há uns anos atrás, tivesse medo de expressar a nossa paixão, o desejo que gasta horas do nosso dia, nos fins de semana em que nos encontramos. Talvez fosse mais certo não conseguir escrever sobre o amor que nos consome todos os dias, com medo de ver todas as mensagens, cartas e passagens nas mãos e bocas erradas. Mas, tanto tempo depois, é certo que o medo é o maior desestabilizador da vida de qualquer ser humano. Cabe ao coração e às minhas palavras afastar esse receio de descrever-te, de falar sobre o sexo, os medos, as inseguranças, os beijos. Os teus lábios sobre os meus, a sentir a minha respiração…

Escrever, escrever, escrever, escrever. Sem ver o fim da narrativa, sem perceber o segundo em que tem de largar as suas palavras, a sua ânsia em voltar a revê-lo. Escrever, escrever, escrever para afastar a sua ausência, as palavras que ficaram por dizer no dia em que decidiu não regressar a casa. Duas mãos retiraram-lhe o tapete debaixo dos pés, tão repentinamente, tão violentamente. Cansa-se, aos poucos, das palavras acabadas em –mente, tão erradas na tentativa de descreverem os seus sentimentos. Quer acalmar a sua sofreguidão, ao recorrer às palavras que coloca no papel, longe de descrever as suas próprias cenas de sexo, mas não consegue encontrar as mais corretas. Com tantas à escolha, é-lhe impossível saber as mais dignas. Fidedignas, digamos. Não lhe resta esperança mas basta-lhe escrever, escrever, escrever para espantar todas as mágoas da alma. Esse manto invisível e suave que envolve todos os órgãos, com uma atenção especial ao coração. Quem sabe se a alma não seja só mais produto, um fruto nascido do terreno entre a ficção e a realidade.

Deixa cair a caneta de tinta azul no tapete da sala, ao sentir a mãe a entrar pela casa, com o barulho das chaves a ecoarem por todo o hall de entrada. No segundo em que a caneta aterrou em cima do tapete, colocado naquele chão de mosaico avermelhado, em tons de vinho escurecido, quis descobrir como tinha escrito todas aquelas palavras. Um produto proveniente das saudades, talvez. As suas palavras, rascas construções a olharem para o seu corpo no momento em que tirava a camisa para ir tomar um duche. Sem resistir-lhe, não hesitava em colocar os meus lábios no seu corpo, antes de o deixar ir escorrer o seu cansaço debaixo do chuveiro. Palavras interrompidas pelo chamamento da minha mãe, com os seus pensamentos a milhares de quilómetros de distância. Descrevia-me, entre berros e palavras exclamadas a um volume demasiado alto, as aventuras da minha irmã, em terras inglesas. Dos pacientes atendidos, das lágrimas libertadas por presenciar as doenças capazes de comer, em carne viva, os seus pacientes. A sua quase família em terras distantes, estranhas às suas raízes. A minha caneta voltava para as minhas mãos, colocada em cima da mesa, e a aflição no meu peito continuava. Só queria escrever, escrever, escrever e escrever, mais uma vez, para colocar-te no fundo dos meus pensamentos.

Derrete-me o corpo. Percorre um chão com os restos do meu corpo. Deixa que a chuva caia sobre os pedaços derretidos de mim. Escorra pela calçada deste país, pelas águas salgadas do mar, estarás sempre em mim. Nestas obsessões que crio à tua volta, nos cadernos que deixei no meu quarto, em cima da mesa de madeira. E, sem nada prever, abandonaste-me. Foste percorrendo a rua do nosso apartamento, com o guarda-chuva aberto, para te misturares com a multidão e desapareceres. Em segundos, em horas, dias e nenhum sinal teu.