É difícil conjugar estética com os desejos
mais ambiciosos nos lugares mais escondidos e com mentalidades em linhas retas.
É difícil acordar com um cabelo alinhado, sem mostrar sinais da desarrumação
passada. Diria mesmo que é fodido amar sem limites, confiar, oferecer um pouco
de intimidade a um outro ser humano. Quando muitos se preocupam com o que
vestir às oito da manhã, existem outros que choram com o sabor de traição nos
lábios, com os dedos a derreter graças a alguns papéis. Tomo o café sem saber o
que está à minha espera, encantado para os meus olhos castanhos – sempre senti
essa ausência como a alavanca para a descoberta, o anseio para acordar todas as
manhã – e continuo a barrar o pão torrado com doce de morango, à espera que um
corvo traga as notícias logo pela manhã, mesmo a associar este animal selvagem
a um mensageiro da noite. Bebe-se um gole de café acompanhado, ao som de uma
segunda voz a soltar pela boca uma série de sonhos ou com o som de um telefone.
É uma segunda presença que se manifesta fisicamente ou tecnologicamente, não há
margem para dúvidas que se oferece um pouco de intimidade em todos os momentos.
Apesar de não existir carne à minha frente para tocar, aparecem palavras
escritas por mensagens de um ser a 300 quilómetros de distância. Dar intimidade
requer companhia, dizem as minhas células. Ser humano que ocupa o trono a
partir do momento em que se gastam minutos de atenção com ele.
Oferecer intimidade é dar a uma segunda
personagem o papel de protagonista, equivalente a um nobre ou mesmo a um rei
por se oferecer as entranhas, os segredos, os acidentes domésticos – um pouco
de café na roupa, as mãos recheadas de água que são limpas às calças, a queda
quase eminente contra o chão devido aos sapatos escorregadios – equivale a uma
coroação através da admiração profunda, os sentimentos florescem à velocidade da
luz. Ou diria, a uma velocidade lenta? O botão de uma rosa demora algum tempo a
abrir. Esses minutos, essas horas, esses segundos pulsam-me na pele, no espaço
em que dois seres humanos criam uma bolha de intimidade. É difícil quando essa
bolha sofre cortes, o oxigénio entra e invade o ambiente, os meus olhos
castanhos entram em contato com um novo ar, morrem com a luz do Sol. É
complicado superar o desalinho dos fios de cabelo e tentar perdoar algo que
corroeu essa intimidade.
Sobe-me um pouco à garganta o ácido do
estômago de cada vez que recordo as palavras recheadas de veneno. O veneno da
cobra que encantou Eva no Paraíso. Está na Bíblia, quase todos conhecem. Refiro
este livro, o mais conhecido de todos, não para banalizar mas para saber que me
afeta. Tudo o que me toca, tudo o que me faz pensar é referido. Assim como
escrevo sobre a minha mãe, o meu pai, a minha família, o amor da minha vida,
escrevo sobre a Bíblia. Quando quebro
a intimidade com alguém sinto vontade de rezar, de me ajoelhar no chão nestes
estranhos desejos que tantas vezes passam pela minha cabeça. De sussurrar a
Deus, de senti-Lo nos meus braços até não conseguir respirar, de chorar e
afundar-me com Ele. Coloco-o em maiúsculas para não sofrer represálias, como é
evidente. E quero sussurrar no momento em que engulo intimidade, de todas as
esquinas e recantos.
Acordo todos os dias a pensar quais vão ser
os sapatos que vou usar nesse dia. Muito depois do Sol nascer não sei como
estão os meus olhos castanhos. E choro porque te perdi e há algum tempo que não
conseguia soltar as palavras. A nossa bolha de intimidade perdeu-se no
horizonte e, pela primeira vez, o oxigénio atormentou as minhas cordas vocais.
Escrevo tão atentamente e desafortunadamente porque há alguns dias atrás não
sabia o que escrever, não encontrava as frases ideais, identificação era algo
que não fazia parte do dicionário sempre que olhava para os meus rascunhos.
Agora vejo, doem-me os ossos das mãos por sentir o significado da intimidade.
Equivale a falar, a estar acompanhado, a mostrar os meus cabelos desgrenhados,
os restos de tintas que ficaram em alguns fios. Sem medo de represálias, sem
juramentos, sem análises. Nunca existe uma avaliação de uma das partes quando a
intimidade perfuma o ambiente. É fodido amar sem limites. Mas chega a uma
altura da vida em que é necessário assinalar as fronteiras.
Escrevo isto para ti, minha amiga. São estas
as palavras que te quero oferecer. Sem uma cor, apenas com um cinzento e uma
declaração de amor. Tomo o café e o telefone não toca, prefiro a companhia da
minha mãe, mesmo que seja em sonhos já que a sua hora de entrada no emprego é
às seis e meia da manhã e nunca acordo de madrugada.