O peão
estava pronto para atravessar a estrada
no momento em que o carro atravessaria a rua a mais de duzentos quilómetros por
hora, ou devo dizer segundo? Num mundo em que é necessário explicar tudo ao
pormenor nunca se sabe se as palavras que libertamos são entendidas correctamente,
já que contextos não são revelados e todos sabemos que a máquina humana não
está habituada a pensar. Como estava a escrever anteriormente, o peão estava
pronto para atravessar a estrada e colocar fim à própria vida num acto conturbado,
quem sabe plenamente entediado por não ter uma vida que idealizou ou
ambicionou.
Ambos sabemos que o ser humano adora
idealizações, combinações, planeamentos. Maioria das senhoras idealiza um neto
que os filhos homossexuais supostamente vão ter. Maioria dos homens espera que
as suas filhas não sejam tocadas por nenhum rapaz até se casarem (e normalmente
são essas que caçam todos os pedaços de carne musculada que andam pela rua,
numa exibição digna de estar numa montra de qualquer loja dirigida para um
público rigoroso). Maioria dos filhos quer mostrar a sua masculinidade
misturada com insensibilidade através do número de namoradas que vão levando
para casa. Todas as pessoas são iludidas pela primeira cara-metade até o tempo limite
para consumo se esgotar. Ideias, sonhos, ambições e desejos que estão escritos
na testa de qualquer pessoa que ande na rua com medo do pensamento alheio, a
espreitar o caixote do lixo do vizinho para denunciar a primeira falta de
cuidado, o cheiro imundo provocado pelo descuido da vizinha que estava ocupada
a cuidar dos cinco filhos, a arrumar a casa e a tratar da sogra senil enquanto
o marido se encontrava a ter um orgasmo com a secretária na empresa. Demasiados
clichés que se vão repetindo ao longo
de gerações, vou olhando para o relógio e para o calendário à espera da hora em
que vou desistir de acreditar em qualquer tipo de mudança.
Espero sentado, espero em pé, observo e sinto
receio de cair em idealizações tal como
todos os outros. As imagens mentais que me levam à loucura momentânea
permanecem nas minhas veias, acompanham as viagens do meu sangue quando coloco
a colher de cereais na boca, mal acabo de acordar. Demasiado tabaco deixado
pela minha mãe (especulações, sempre gostei de imaginar a minha mãe a fumar.
Talvez por ela ser totalmente contra o fumo ou contra o veneno que está
associado a um cigarro?), acaba sempre por sujar a bancada quando tiro uma das
tigelas compras na feira do meu bairro. O bairro que me viu a crescer, a
pentear os cabelos das bonecas e dos maridos das bonecas. As estradas que me
beijaram os joelhos nos dias em que comecei a tentar andar de bicicleta, que me
acalmaram quando me sentei com um livro a desfrutar dos raios solares. As
estradas que me conseguem ver-me como um simples peão a arriscar a vida pela
ausência de concretização de sonhos, por não ter pintado os cabelos num tom cinzento
como desejei há dois meses atrás e por me teres abandonado. Abandono é o meu
fruto, aquele que descasco todas as noites para me acompanhar o chá, queima a
língua e aquece as minhas mãos quando pego na chávena e levo à boca.
Maioria das pessoas sonha com uma mansão com
quatro andares, dez quartos e cinco mil casas de banho sem esquecer das duas
piscinas (uma interior e outra exterior, para variar nas estações do ano).
Algumas pessoas. Maioria das pessoas têm uma pequena casa, com dois quartos,
uma casa de banho, uma cozinha e uma sala. Maioria das pessoas vive num pequeno
apartamento, com paredes de cartão e com barulho a infiltrar-se todos os dias,
nas madrugadas de lua nova. Queimei os lábios ao beber chá e nesse momento
decidi transformar-me num peão e ser algo diferente, a diferença no campo da vulgaridade. Chamo de vulgaridade porque já
se inventou tudo, já se reinventou mais alguma coisa, nem consigo cometer um
suicídio particularmente chocante como ambicionava. Coloco uma roupa decente,
transformo-me num peão de um jogo de xadrez e resolvo brincar com o meu próprio
destino. Pergunto-me qual a novidade desta decisão, enrola-me o pescoço, toco
no meu rosto à medida que vou olhando pela janela. Acabei de idealizar uma morte, acabei por me deixar levar por um
dos meus maiores medos e coloco-me de joelhos no chão, com a cabeça virada para
cima. Não sei se rezar irá trazer algum conforto ou paz, necessária para sentir
vivacidade nos meus músculos, chamo por uma divindade que nunca esteve comigo. Ou
então nunca chamei por Ele, como todos gostam de colocar em maiúsculas para
mostrar respeito. Mas como vou mostrar respeito por algo que não compreendo? A
minha boa educação consegue sussurrar-me aos ouvidos e mantenho as mãos
ligadas, à medida que vou proferindo passagens da Bíblia que me ficaram na
cabeça, das vezes em que a minha avó me obrigou a estar sentado nas missas de
domingo. Antes do café, antes do almoço.
Transformei-me num peão, pronto para acabar
com a minha vida. Idealizei um acontecimento. E por isso pergunto-me, o que
estou ainda a fazer aqui? A comer a minha própria pele, a experimentar as unhas
roídas.
2 comentários:
Adorei. Tens um olhar diferente sobre as coisas mesmo pegando naquelas que todos conhecemos, isso é precioso, David.
(Agora vem a parte do comentário comandada pela psicóloga que quis ser um dia) Não tenhas medo de idealizar. Não o faças muito. Mas idealiza o suficiente para sonhares, para teres a noção de quando a realidade é boa ou má. Para poderes ter o termómetro que te diga se podes suspirar de alivio e baixar os braços para apenas viver ou se, pelo contrário, tens de arregaçar as mangas e tentar mudar a tua realidade.
Eu ando a aprender a idealizar menos. Costumava idealizar tanto que me esquecia de arranjar coragem para arriscar, para sair do sonho, sair do conforto, para viver.
Beijinhos *
O problema é idealizar em demasia quando se trata de questões do coração. É essa a verdadeira aprendizagem que todos devem fazer. Idealizar para sonhar e parar quando o mundo de sonho é demasiado confortável.
Beijinho, minha querida.
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