Consigo ver as veias e o sangue a passar nos
teus olhos, completamente despidos de qualquer proteção muscular com o
verdadeiro poder da tua observação a inquietar-me a alma. Tenho a capacidade de
explorar os teus ossos, o teu esqueleto com a minha simples visão por ter o
conhecimento a inflamar-me as decisões e a deturpar os meus desejos. Tenho-te a
ti e ao teu esqueleto deitados no meu sofá, na individualidade própria de cada
corpo humano, com a sensação de ter a tua alma pregada à brancura de cada osso
da tua constituição. Um arrepio percorre os meus músculos quando colocas a mão
sobre a minha perna, para acariciar ou magoar em seguida com um ligeiro aperto
na pele. Esse arrepio alastra-se pelos cabelos por ter um cadáver a beijar-me o
pescoço, a mexer nos meus fios capilares no mesmo segundo e a desejar-me
furiosamente, evocando todos os espíritos. Um desejo mútuo de possuir os teus
ossos, de quebrar toda a tua constituição e de procurar o coração que falta na
tua caixa torácica cresce aos poucos. Leva-me daqui, leva-me daqui por não aguentar mais os espaços rodeados de seres
humanos, de vivacidade, de trivialidade e crueldade que rodeiam todos os
dedos recheados de carne, de pulsação e sangue azul. Um sangue que coloquei na
tua boca, um disfarce contra a ausência de lábios carnudos. Falta-te um pouco
de carne para conseguir amparar-te nos meus braços, falta-me um sorriso já que
não escondes os dentes límpidos por detrás de qualquer tipo de pele, falta-te
um sentido de vida por estares colocado no limiar da diferença quando o
oxigénio passou por todo o teu pescoço pela primeira vez. E a tua língua
continua a incendiar-me, a tua mão gela-me as pernas enroladas na tua cintura.
Quero puxar os cabelos que te faltam na nuca, ambiciono um pouco de carne para
apertar quando os teus lábios possuírem os meus. Quando trocarmos de papéis,
quando me roubares toda a humanidade.
Conheci-te
no teu próprio funeral, quando o teu corpo estava pousado no caixão e a tua
alma estava sentada ao meu lado. Conheci-te quando sussurraste a confissão de
me observar há alguns anos, por teres a capacidade de sair do teu corpo durante
a noite e olhares para os meus olhos castanhos quando estava a ler uma
enciclopédia. Nas horas de leitura dos meus dez anos de idade, dos meus quinze,
dos meus vinte. Sentei-me no banco da capela sem ter permissão para te
responder, demasiadas lágrimas eram libertadas devido ao teu suicídio, à tua
inconformidade para com a linha dos vivos, dos que permanecem na Terra sem
qualquer lógica ou plano. Por me amares à distância, por apenas existir o
desejo de pintar os cabelos num tom cinzento e utilizar roupas negras nos pouco
mais de vinte e cinco anos de existência. E a promessa de teres uma última
experiência sexual antes de partires foi colocada em cima do banco, mas não
esperava desejar um cadáver depois da meia-noite. Uma constituição óssea
recheada de desejo para possuir às duas da manhã. À medida que escrevo penso,
não quero falar nisto, não quero pensar nisto, não quero relembrar isto. Mas se não comunicar sobre os tormentos da
minha alma nunca vou chegar ao cabo da Boa Esperança. Os medos consomem a minha
pele se não soltar palavras e o meu corpo decompõe-se ao estado de um igual
cadáver por não ter controlo sobre a situação, sobre os meus pensamentos. Não
quero falar sobre isso, continuava a pensar, o ciclo vicioso entrava em ação a
balançar todas as peças. Consigo ver as veias nos teus olhos, com os meus
lábios a tocarem na tua boca, a tentarem morder os teus ossos frágeis.
Corro
rapidamente para fugir dos meus fantasmas, corro para fugir dos teus fantasmas.
Passo horas a correr, mesmo se equivalerem a anos. As pessoas passam demasiado
tempo a correr, gastam o tempo a apaixonar-se quando deviam amar o próprio
corpo, ao invés de desejarem cadáveres e almas sem um corpo. Tenho-te a ti e
preciso de um pouco mais de realidade, só me apercebo deste desejo quando passo
horas a observar as paredes de um novo quarto, totalmente brancas e sem
qualquer decoração. Tenho-te a ti mas prenderam-me os pulsos numa cama para as
horas passarem a loucura não consumir o meu cérebro. Quero falar sobre o que me
vai no coração, sobre todas as pulsações que teimam em matar este músculo.
Tantas vezes citado, tantas vezes maltratado. O meu barco afundou-se no cabo
das Tormentas. Os destroços ficaram contigo e estou apaixonado pelo passado,
por ti até ao momento em que olhar para ti e ver-te como o futuro. Mas para não
me consumir, vou falar sobre isto a todos os ventos, vou falar sobre isto até a
minha voz se esgotar.
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