
Sentia unicamente uma manta impecavelmente
limpa, livre de qualquer tipo de impureza, sobre o corpo à medida que os raios
solares exploravam todos os pormenores. Os olhos não desejavam alcançar a
clarividência do passado, guerreiro
vitorioso no derrubamento da confiança construída ao longo dos anos, peste
insolente capaz de destruir em segundos, como se adquirisse a forma de sombra,
negra, escura, gelada. Não existia nada à volta, nem assombrosos apartamentos,
estradas, viaturas de todas as formas e feitios, nem árvores, frutos ou
qualquer outro objecto animado ou sem vida ao pé do corpo enrolado. Unicamente
uma brisa proveniente do “nada”, um vazio que alcançava os seus tecidos naturais
e lambia suavemente as costas protegidas por aquele cobertor (ou qualquer nome
que lhe queira atribuir) e também os raios solares eram os únicos exemplares de
vivacidade que tocavam neste corpo, que experimentavam saborear corporalmente a
vida. Mantinha-se a serenidade, a incapacidade de demonstrar movimento no vazio
em que se encontrava. E uma paz continuava a inundar a alma, como se a aflição
do fim do Mundo não tivesse importância. A sobrevivência em caso de alucinação é só um pormenor, o espírito encontra-se
presente em todas as horas, em todas as gerações em todos os julgamentos
finais.
Vender a
alma em qualquer vida terrena contém um preço fatal. Entregar o coração a qualquer ser desumano
com a intenção de recompensas no futuro destrói a essência, agregada a qualquer
sorriso ou lábio pintado. Planear o caminho detalhadamente até ao sopro final,
com a venda da alma nos inícios, equivale a morte profunda. Resta unicamente
o corpo, a tecnicidade de um sorriso elaborado pelas exigências formais, a
ambição vazia de qualquer riqueza (o mal de muitos rostos presentes no
planeta Terra), desaparecem os pequenos saltos pelo segundo de excitação
provocada por uma boa notícia, voa o acordar para combater com armas de fogo o
prazer malévolo, desaparece a pureza de um comportamento solidário, como daquela
vez em que entreguei dinheiro a uma vagabunda que cirandava à volta de todos os
carros estacionados, com um olhar semelhante à ausência de esperança, ao pânico
do dia seguinte. Aquela alma, colocada dentro daquele corpo, estava à espera do
julgamento, do castigo que previra quando os guardas irromperam pela sua casa a
horas tardias para qualquer cidadão normal, ignorante de todas as
sobrenaturalidades que vagueiam. Quando os braços ficaram presos numa espécie
de corrente, os olhos viram o demónio a rebolar no espelho, olhando
pateticamente para a situação. Gaba-se silenciosamente do acordo elaborado há
anos atrás, colocava a mão no peito que continha o coração de quem era preso,
saco de alimento para continuar a existir saudavelmente aos olhos de todas as
divindades. Não lhe conseguiam colocar as mãos mas observavam os seus passos,
não impediam qualquer venda por saberem que as lições tinham de ser aprendidas,
para conseguirem perceber quem eram as boas almas, onde se instalavam as
podres, dotadas de insensibilidade e inteligência. Quando aquela alma foi levada, essa espécie de demónio andava à procura
de um novo sujeito para enganar.
O preço tem de ser saldado em qualquer
segundo, aquele corpo estático não pressente a chegada do brilho tranquilizado,
sob a forma d’Aquele que todos veneram, e pelo qual nunca existiu um pouco de
admiração por parte de quem está a ser julgado. O passado continuava do lado
esquerdo e o futuro estava prestes a sair pela porta, cansado de todas aquelas
acções, com o conhecimento do seu aspecto final mas completamente fatigado das
constantes mudanças de aparência. Alheia ou pessoal, daquele que se encontrava
unicamente enrolado. Sentiu pela última vez aqueles raios solares, calorosos e
ternos. Quando se sentou à sua frente, colocou a alma que mais amava à sua
frente. Sorriu, falou calmamente e passou a mão pela cabeça. Mas destruiu essa
existência, retirou-a de todas as dimensões. Dissecou-a à frente do espírito
que se encontrava no julgamento, portador de uma voz excêntrica. Soltou o grito
nesse momento, como se não fosse capaz de mais nada, qualquer acção seria
desprovida de sentido sagrado. O demónio enganou mais um nesse momento, matou a
existência de outra personalidade ao acolher um coração alheio no peito.
Quando se
vende a alma sente-se o vazio. Um nada
que se apodera das veias e retira toda a força da pulsação, o preço é fatal.
Talvez o julgamento seja o final.